Roger Scruton é jornalista, escritor, filósofo e professor de investigação no “Institute for the Psychological Sciences”, na Virgínia.
Num amplo e interessante artigo de pensamento, publicado na revista Prospect (Agosto de 2007), Scruton defende que a investigação sobre as origens humanas da religião é mais uma tentativa de superar a violência inter-humana.
A polémica ateísta actual, segundo Scruton, ignora a intuição fundamental da antropologia da religião, isto é, que a religião não é primariamente sobre Deus, mas sobre a necessidade humana do sagrado. Como argumenta René Girard, a religião não é a causa da violência. Mas a sua solução.
Para Roger Scruton não é estranho que nestes tempos de desconcerto religioso, perante o espectáculo dos assassinatos surgidos no mundo islâmico, tenham eco as polémicas anti-religiosas de Richard Dawkins, Christopher Hitchens e outros. Os “sonhos da razão” engendraram monstros como Goya antecipou nas suas gravuras, diz Scruton.
Para estes críticos da religião, esta não é mais que um sistema de crenças infundadas sobre o cosmos, facilmente refutáveis na sua opinião. Para Hitchens (em "God is Not Great") os religiosos não têm nem ideia do que se está a passar.
Respondem aos ingénuos temores e necessidades da nossa infância e buscam segurança e conforto. Hitchens reconhece que as suas críticas não são originais e têm vindo a ser repetidas há mais de duzentos anos.
Ninguém que esteja familiarizado com o Iluminismo deixa de advertir que estas novas críticas não acrescentaram nem uma vírgula ao que já se tinha dito, a não ser acrescentar à lista alguns novos crimes modernos da religião, diz ironicamente Scruton.
A pergunta pela natureza e origem da religião
No entanto, mesmo que os pensadores do Iluminismo defendam que a religião não tinha fundamento racional, nem por isso consideraram a religião como um fenómeno já descartado.
Muitos deles questionaram-se se a religião não devia ter uma origem que não fosse nem a razão científica nem a busca de consolo psíquico perante a angústia. Pensaram que a religião não devia ser nas suas origens tanto uma questão de doutrina quanto algo diferente. Deviam, pois, descobrir o que era.
Assim nasceu no Iluminismo a antropologia da religião. Jacobi, Schiller ou Schelling participaram, entre outros, na sua discussão. Mas o centro de atenção centrou-se não n“a” fé singular (por exemplo, a cristã) mas nas crenças religiosas, nas diversas religiões, na busca da chamada religião universal.
A isto respondia precisamente o livro de R. Fl. Depuis “Origine de tous les cultes, ou Religion universelle” (1795). Foi também o tempo em que começou o estudo aprofundado das religiões universais, por exemplo, os estudos iniciados pela “Bengal Asiatic Society” em 1788.
O emocional na religião
Para muitos dos pensadores pós-iluminados, a religião não surgia de arrazoados científicos, nem de superstição, nem de magia, mas da cristalização de estados emocionais do psiquismo humano primitivo. Estas emoções eram a causa que buscava a sua expressão nos mitos e rituais antigos, ou nos Vedas (proibições) e Upanishads do hinduísmo.
Georg Creuzer (“Symbolik und Mythologie der alten Völker”, 1810) entendeu o mito como uma operação especial que não tende a representar conhecimento localizado de algo sucedido uma vez, mas uma forma simbólica de expressão de algo que sucede contínua e repetidamente. O mito não explica com precisão as origens causais do mundo mas a sua permanente significação espiritual.
Esta forma de entender o mito foi aplicada por Hegel à religião cristã nas suas “Lições sobre a Filosofia da Religião” onde falando da história da queda no Paraíso nos diz: “não é simplesmente uma história contingente, mas a eterna e necessária história da humanidade”. Nós podemos acrescentar que esta forma de entender os mitos é hoje comummente admitida na teologia cristã.
Foram já Nietzsche (em “O nascimento da Tragédia”) e Wagner (em “Tristão”, “O Anel” e “Parsifal”) que advertiram algo que, na opinião de Scruton, não parecem haver entendido Dawkins, Hitchens e Daniel Dennett. Mostraram, com efeito, o lugar do sagrado na vida humana e o tipo de conhecimento produzido através da experiência do sagrado.
Podemos eliminar da religião grega os deuses e as suas histórias sem eliminar o essencial da sua religiosidade. A realidade primária não está em mitos, teologia ou doutrina, “mas em rituais, em momentos que estão fora do tempo, nos quais a solidão e a ansiedade do indivíduo humano se confronta e se supera através da imersão no grupo”, diz Scruton.
Esta ideia da vivência do sagrado constituiu a pedra essencial da sociologia da religião. É o que vemos em James Frazer e Emile Durkheim.
Os momentos de vivência do sagrado preservam o indivíduo da alienação e cumulam-no de plenitude dentro de uma significação social complexa e diferenciada segundo os diversos povos e culturas.
Rodolf Otto (“Das Heilige”, 1917), Georges Bataille (“L'Erotisme”, 1957) e Mircea Eliade (“O Sagrado e o Profano”, 1957), insistiram neste tipo de vivências sociais, onde o cognitivo não tem importância (e menos o filosófico ou científico), como sendo a origem da religião.
Nesta mesma linha, René Girard em “La violence et le Sacré” (1972) colocou a experiência de “o sagrado” como fundamento da coerência dos grupos humanos e da superação das alienações em que realmente se encontram.
René Girard: a religião, causa ou solução da violência?
Scruton lembra que tanto a Bíblia como o Alcorão oferecem a paz, mas a par de um Deus misericordioso e compassivo aparece também com frequência um Deus colérico e sangrento que exige de Abraão o sacrifício do seu filho Isaac. Um Deus, observa também Scruton, obsessivo com os genitais e exigindo que fossem sacrificados em sua honra; tema este que foi explorado por Jack Miles no seu livro “God: A Biography” (1995).
Pensadores como Dawkins e Hitchens concluíram também que a religião é a causa intrínseca da violência e da obsessão sexual. Para eles os crimes praticados em nome da religião são a razão principal que nos permite repeli-la.
Estes autores são tão radicais que, das suas considerações parece deduzir-se que, se não tivesse havido religião, a história humana tinha sido um remanso de paz, concórdia e felicidade.
A tese de René Girard – crítico literário, pensador e membro da Academia Francesa – é precisamente a contrária: a religião não é causa da violência, mas a sua solução. A violência vem de outra causa que nos une à violência na luta pela vida já presente no reino animal.
Não tem existido sociedade sem violência desde que os homens vivem em sociedade. O mesmo pode dizer-se da pretensa obsessão religiosa com a sexualidade: a religião não é a causa mas uma tentativa de resolver esta obsessão e a violência consequente.
O mito nietzscheano da escravatura universal
O conhecido mito nietzscheano, exposto na sua última obra “Sobre a Genealogia da Moral” (1887), é também uma espécie de narração mítica que explica a história universal. Porque as coisas foram como foram e qual foi a origem da violência.
Nietzsche imagina uma sociedade original onde as “aves de rapina” – os fortes e poderosos, aqueles autoafirmados frente aos demais, aqueles ricos egoístas que impõem os seus desejos aos outros pela força – impuseram uma espécie de escravatura universal.
Já que o escravo está humilhado e submetido não pode vingar-se e orienta o seu ressentimento para si mesmo. Menospreza-se envergonhado da sua posição, inclusive pode pensar que a merece. Assim nasce para Nietzsche o sentimento humano de “culpa” e a ideia de “pecado”.
Esta “moral dos escravos”, original em todos os seres humanos, é a que tomou forma na moral cristã da autonegação e da mortificação.
Nietzsche, portanto, parece reconhecer que a violência, a submissão, os sentimentos de culpa e pecado são anteriores à religião. São expressão de uma natureza humana original que supôs a violência do confronto de uns contra outros. Acrescentamos nós que esta opinião parece ser também a de outro autor muito importante: Hegel.
A religião é posterior a uma violência mais primordial (o não reconhecimento mútuo e a luta de morte pela sobrevivência entre os homens, como explica no capítulo IV, de “A Fenomenologia do Espírito”). A religião para Nietzsche e para Hegel nasce como uma evasão da violência original.
Scruton considera que por trás da tese de Nietzsche há uma verdade que se pode constatar. “O ressentimento, diz Scruton, é um componente das nossas emoções sociais e prevalece amplamente nas nossas modernas sociedades.
O século XX foi o século do ressentimento. De que outra maneira podem explicar-se os assassinatos em massa dos comunistas e dos nazistas, a animosidade violenta de Lenine ou Hitler, os genocídios de Mao e Pol Pot?
As ideias e emoções subjacentes aos movimentos totalitários do século XX devem ser assinaladas: identificam uma classe de inimigo cujos privilégios e propriedades foram injustamente adquiridas. A religião não joga nenhum papel na destruição consequente e com frequência está até incluída como um dos objectivos”.
A teoria de Girard: violência, sacralidade, religião
Girard apresenta a sua interpretação das origens da violência, da sacralidade e da religião, na forma de um mito que nos permite entender o que agora vemos nas nossas sociedades. A antropologia da religião de Girard, como a de Nietzsche e a de muitos outros, admite o suposto de uma violência primitiva na espécie humana.
Pensamos que esta é a mais aceite e mais provável, já que, em último caso, a espécie humana deriva da agressividade e violência adaptativa das espécies animais em que não havia nem razão nem religião alguma.
Para Girard a vivência do sagrado nasce do esforço humano por superar o conflito e a violência. Os grupos humanos vivem numa “violência comunal”, interna. Os rivais lutam para tomar posse dos bens – materiais e sexuais – de forma crescentemente antagónica em ciclos de inimizade e vingança.
O sentimento de violência, de culpa e de pecado de uns contra outros é opressivo. Uma grande tensão psicológica levou os povos primitivos a libertarem-se desta tensão acumulada socialmente. Há alguma forma de libertação?
A solução é identificar uma vítima possível, estranha à comunidade dos homens, que deva purgar a sua culpa e o seu pecado. Uma vítima pura contra quem não há desejo de vingança. Mas uma vítima que se sacrifica para expiar a culpa acumulada pelo grupo humano.
O povo, ao unir-se no sacrifício do “bode expiatório”, está unido no reconhecimento das suas culpas e na necessidade de expiação que se realiza no sacrifício da vítima.
Sentem-se assim libertados das suas rivalidades e reconciliados, já que o sacrifício purga a violência acumulada e o grupo sente-se unido numa pureza original.
Libertação “sacra” pelo sacrifício
A hipótese ou mito explicativo de Girard considera que o povo unido nos rituais religiosos, na oração, na participação purificadora da tragédia, nas práticas sacrificais, tem sempre a experiência que a sua violência e o seu pecado original acumulado se libertam. Perdoam-se e reconciliam-se uns aos outros, ao mesmo tempo que uma ordem natural de harmonia se restaura.
“A experiência do sagrado, diz Scruton comentando Girard, não é um resíduo irracional de temores primitivos nem é uma forma de superstição que um dia será superada pela ciência. É uma solução contra a agressão acumulada que jaz no coração das comunidades humanas”.
Esta é a experiência de paz e reconciliação que as diferentes religiões produzem nos seus ritos: desde a eucaristia cristã aos cultos misteriosos da antiguidade e aos lugares sagrados do hinduísmo.
Girard interpreta o cristianismo
De acordo com esta teoria Girard interpreta o que no cristianismo é o sacrifício de Cristo. Em “Le Bouc émissaire” (1982) Girard identifica Cristo como uma nova classe de vítima que se oferece a si mesma em sacrifício. A vítima oferece-se a si mesma e, no momento da sua morte, perdoa os seus carrascos.
É o momento sacro em que todos podem contemplar que é possível assumir as culpas, perdoar e renunciar à vingança passional. O sacrifício de Cristo pode fazer do “amor ao próximo” uma realidade no coração dos que se purificam por este sacrifício.
A interpretação de Girard parecerá pobre e incompleta face à teologia cristã. Em primeiro lugar é difícil entender a religiosidade original sem postular que o homem primitivo construiu também uma representação, uma ideia, ou uma vivência emocional (ou ambas as coisas) referida a uma entidade transcendente e de alguma maneira pessoal (possível objecto de apelação ou de ligação perante a angústia da vida). Isto supõe aspectos cognitivos, ou seja, de conhecimento.
Além disso, é também possível a hipótese de Girard referente à religião como via de libertação da culpa pela violência. O sacrifício suporia uma experiência de libertação face a esta culpa pela violência inter-humana e também uma libertação pela culpa perante a realidade transcendente, de alguma maneira pessoal (Deus ou deuses) responsável pela ordem natural transtornada pela acção humana. Ambas as coisas iriam juntas, sem excluir, integrada uma na outra.
Portanto, a tentativa de Scruton de entender o sacro como pura vivência, através do sacrifício, de uma libertação da culpa pela violência só constataria uma descarga emocional puramente humana se a experiência de sacralidade não fora também ligada ao transcendente, ao mistério, o pessoal divino.
Portanto, para que haja experiência religiosa como tal, o sacrifício deve viver-se como uma expiação da culpa perante a transcendência do mistério e, o que não ficaria excluído, uma expiação da culpa perante a fraternidade humana pela violência.
O mistério de Cristo
Por outro lado, a interpretação do mistério de Cristo oferecida por Girard também aparecerá perante a teologia cristã como pobre e incompleta. Não pelo facto do pensamento de Girard não poder ser assumido. Mas a teologia cristã entende com maior profundidade o mistério de Cristo, o sacrifício da sua Morte e Ressurreição.
Este Mistério é, antes de tudo, obra de uma pessoa divina pela encarnação que, na sua Morte e Ressurreição, manifesta e realiza o plano de Deus na criação do mundo e salvação do homem.
Diz-nos que, no seu plano de relação com o homem, Deus aceitou passar pelo momento do seu kénosis, da ocultação da sua Divindade na morte na cruz. Mas que pela Ressurreição Deus se manifestará como libertador do homem e da história numa nova dimensão transcendente.
Deus aceitou este plano e assumiu o uso da liberdade humana, a culpa e o pecado (o pecado perante Deus e o pecado perante os homens) que ficaram perdoados pelo sacrifício de Cristo.
É a religião causa da violência na história?
O artigo de Scruton foi escrito, sem dúvida, para sair ao encontro de uma tese que divulgaram populares críticos do religioso como Dawkins, Hitchens e Dennett. A tese atribui à religião a responsabilidade causal de ser origem da violência.
Para estes autores é uma tese que está hoje avalizada pelo facto das ligações, pelo menos sectoriais, de uma religião, o islão, com a violência. Se não houvesse religião, o mundo seria feliz. Imaginemos como seria um mundo sem religião!
Para tomar posição perante esta tese, lembra Scruton a antropologia da religião de Girard, na senda dos autores posteriores ao Iluminismo. Vem dizer-nos que a violência é antropologicamente anterior à religião e que esta provavelmente surgiu mais para libertar os grupos humanos da violência.
Achamos que a tese de Scruton-Girard é cientificamente a mais correcta. Nas espécies animais havia violência, que herdamos, e na evolução progressiva da espécie homo para o nascimento do religioso, passou-se por períodos anteriores onde não havia religião e havia violência.
A violência responde primordialmente, pois, para uma antropologia científica a uns instintos mais básicos até à competição pelos bens escassos, pela supremacia da liderança ou pelas preferências sexuais.
Mas sendo isto assim, consideramos que a religião uma vez surgida foi-se cruzando com os mecanismos psíquicos e sociais ficando de alguma maneira apanhada pelos mecanismos individuais e sociais da violência.
A religião não é intrinsecamente violenta, mas o contrário; mas ficou apanhada na história pelas estruturas violentas mais primitivas da espécie.
As religiões constituíram assim mais um elemento definidor dos povos e dos indivíduos e foi um factor acrescido que dividiu uns de outros e contribuiu, em algumas ocasiões, para a violência.
Povos, nações, impérios, têm estado em competição pelos instintos mais básicos do domínio e supremacia, mas tingiram as suas competições recorrendo ao amparo do religioso.
Na Idade Média, por exemplo, a religião esteve muito envolvida em conflitos e violência. Ao chegar ao século XVI, as chamadas “guerras religiosas”, deram à religião um papel violento.
Mas uma vez que a modernidade avançou e o mundo civil se separou do religioso, nos séculos XVII, XVIII, XIX e XX, a quase totalidade da violência não teve nada a ver com o religioso, incluindo a menção, como faz Scruton, de Hitler e Estaline.
Guillermo Armengol é membro da Cátedra CTR. Artigo elaborado a partir do artigo de Roger Scruton intitulado “The Sacred and the Human”, na revista Prospect, Agosto 2007.