"Aparentemente são pessoas normais, que matam e torturam por costume, mas não entra numa mente normal ser torturador e depois acariciar o teu filho", afirma o juiz espanhol Baltasar Garzón em "A alma dos carrascos" documentário difundido já pela Televisão Espanhola.
Relatos de sequestros, torturas e humilhações múltiplas de uma dezena de sobreviventes da ditadura argentina (1976-83), apavorantes lembranças de homens e mulheres que sendo crianças foram roubados pelos repressores dos seus pais e testemunhos de alguns repressores ou seus advogados, fazem parte desse trabalho.
"Quem são estes tipos que mandam os seus filhos ao colégio dando-lhes um beijo (...) e que descem a um porão para torturar um preso político?", pergunta o jornalista espanhol Vicente Romero, que dirigiu com Garzón este documentário de 90 minutos.
As respostas chegam de sobreviventes como Nilda Eloy, Marga Cruz, Andrea Bello, Miriam Lewin, Ana Testa, Víctor Basterra, Carlos Lordkipanidse, Cristina Muro, Walter Docters, Munu Actis, vários deles sequestrados na Escola de Mecânica da Armada (ESMA), um dos maiores centros clandestinos de detenção da ditadura por onde passaram 5.000 dos 30.000 desaparecidos, segundo organismos de direitos humanos.
Bares, algumas casas, e também a ESMA, são o palco desta "reportagem" na qual os testemunhos são breves mas dilacerantes.
"Não eram violações a meio de um interrogatório. Se tinham vontade, abriam a porta do calabouço", lembra Nilda Eloy.
"De repente apareceu um com o meu bebé de boca para baixo, apontando-lhe uma arma", diz com a voz entrecortada Cristina Muro ao lembrar quando a sequestraram. "Agora pergunto-me se têm alma", acrescenta.
As Mães da Praça de Maio, as Avós da Praça de Maio que recuperaram as mais de 80 das 500 crianças roubados e os relatos de algumas delas como Paula Logares, Juan Cabandié e Carla Artés, criados, estes últimos, como repressores, têm o seu lugar no documentário.
"Criei-me com o inimigo", afirma Juan Cabandié, enquanto Carla Artés lembra os abusos sexuais que durante cinco anos sofreu por parte do seu "pai", Alfredo Ruffo, membro do serviço de inteligência argentino.
Romero e Garzón - que conseguiu a detenção em 1998 do ditador chileno Augusto Pinochet e instruiu vários processos sobre violações dos direitos humanos nas ditaduras do Chile, da Argentina e da Guatemala - perguntam se "o carrasco surge por geração espontânea". "Não", respondem. "A raiz está nas academias militares".
"Estão em neuropsiquiatria", "achavam-se representantes de uma Cruzada" ou "era um homem muito humano", são as frases que saem da boca de militares retirados ou dos seus advogados de defensa também entrevistados.
"Não são 30.000, são mais ou menos 7.500. É um terço dos que morrem em acidentes de trânsito", responde com descaramento o advogado Gonzalo Torres de Tolosa.
"Nunca escutei uma palavra de arrependimento", afirma monsenhor Justo Lago neste documentário que chega à conclusão que "na actualidade existe esse sistema de repressão" em muitos outros lugares do mundo, como no Iraque ou na base militar americana de Guantánamo, onde "não há espaços de direito".
"A grande hipocrisia dos sistemas democráticos é que estão a consentir isto", conclui Garzón, antes de terminar "A alma dos carrascos" com uma frase referente a pedras preciosas do escritor uruguaio Mario Benedetti: "Alguém limpa a cela da tortura, lava o sangue, mas não a amargura".
A alma dos carrascos - [PDF 360 Kb]