A sociedade, tal como hoje se percebe e se explica, é uma armadilha que apanha no sistema os seus membros.
Tudo é tão previsível, tudo está tão racionalmente explicado e justificado, que nos leva a perguntar: onde está a vida?
Como se abrem as brechas desta armadura social para que ela se manifeste com a sua força renovadora? Como se manifesta nos indivíduos, mesmo que estes se conduzam como se não existisse o seu impulso criador?
Outra questão, que por tão óbvia costuma passar-nos ao lado, é a que nos faz perguntar de quem e de que falamos quando dizemos “sociedade hoje”.
Numa sociedade complexa como aquela em que vivemos, aberta, plural, com modelos democráticos, mais ou menos admitidos e mais ou menos desenvolvidos, modelos que são contemporâneos de outras formas de organização social que respondem à diversidade social mundial, não podemos falar em singular quando nos referimos a ela: se há outros mundos, todos estão dentro do nosso mundo; se há outras sociedades, todas estão dentro da nossa sociedade; se podemos falar de períodos históricos humanos, todos os estamos a viver simultaneamente.
Portanto, temos de estar conscientes da domesticação que padece o nosso olhar, obsessivamente preocupado na criação de uma teoria cujo objectivo principal é encontrar uma explicação que lhe sirva como único mapa, para colocá-lo em cima desta realidade social tão diversa, espalhando-a ao pretender ajustá-la ao molde teórico criado, apesar de ela transbordar por todos os lados, pois não há uma explicação única do mundo, e todas as que existem se inter-relacionam, todas explicam a realidade, de alguma maneira, e em todas as explicações está a verdade que se procura.
E o que é o ser humano? Só um produto da sociedade? Triste sorte a desse ser e a dessa sociedade que assim se constrói!
Cria uma jaula de ferro, mete-se lá dentro, fecha-a à chave e atira a chave fora. Esta dinâmica origina sérias contradições. Como se resolvem? Acumulando sobre elas o lixo que as ocultam. E a dor que produz? Para onde conduz a fome, a doença, a morte, as guerras? A persistência das desigualdades, não é motor que baste para provocar uma reflexão diferente daquela que se limita a escrever a crónica do que se observa?
Esta atitude positivista faz perder de imediato a inquietação pela pergunta permanente e leva a gerar um espírito conservador, perante o pequeno desafio que supõe chegar ao pico de uma simples meseta.
Tudo parece terminar quando esse espírito se baseia sobre uma conclusão teórica (com pretensões de tudo explicar), fria e distante, e que na sua elaboração evitou contaminar-se, pretendendo, com isso, ser objectiva.
No entanto, o posicionamento que adoptamos nesta análise é o de situá-lo na mesma perspectiva na qual se situa esta autora: descobrindo e reconhecendo as peculiaridades do próprio ângulo.
Um ângulo que está fundamentalmente dominado pelo “sensível”. É esta, também, a perspectiva para viver individualmente, e em sociedade, desta mulher que fala da sua feminilidade, da sua maternidade, da esperança e da crença em que a vida nos cria, nos conduz e nos protege, se assumimos as suas leis como padrões para viver e conviver.
O instinto como alento da vida
Esta posição leva-a a sentir e pensar que o instinto é o alento da vida. O mesmo impulso que conduz os comportamentos nos grandes conflitos e nos acontecimentos do dia a dia, e que nas mulheres parece estar mais à flor da pele.
Elas são, principalmente, as que tratam de conservar e defender a vida: são as mulheres da “Praça de Maio”, que não se rendem; são as mulheres do “Terceiro Mundo”, que lutam pelas suas descendências contra as fomes, as doenças e as guerras que as esgotam; são as mulheres do “Primeiro Mundo”, cheias de contradições, porque não deixam de assumir o modelo modernista que se lhes propõe ou se lhes impõe.
Todas, e apesar de tudo, pondo em evidência que existe uma força diferente que não se deixa domesticar, mesmo que as aparências tratem de ocultar esta verdade.
Por isso, não vou falar de mim como mulher, vou ser mulher para falar da força da vida que se manifesta e que sustenta a realidade social.
Através deste modelo trato de evidenciar essa força (a vida) que se quer domesticar através das religiões, ideologias, ciência e tecnologia. Ela aparenta deixar ir até à saturação das contradições geradas por aqueles modelos que pretendem construir um ser humano só como “sujeito pensante”.
E, assim, chegamos a uma sociedade na qual uma parte alcançou importantes níveis de desenvolvimento, comodidade, saturação de objectos e de serviços e, também, “conseguiu” um importante e grave alheamento do mundo sensível.
No entanto, a vida continua e, se quisermos, podemos descobrir o seu jogo olhando transversalmente para toda essa acção humana.
De outra maneira, a vida só a vamos poder observar na sua forma “selvagem”; ali onde os acontecimentos e as contradições se agudizam; ali onde as novas sociedades tratam de sobreviver e observar que seiva emerge (nova ou velha, a única) para renovar o mundo; ali onde, ainda, as formas tradicionais de relação, e os valores que interligam, não se ocultaram na luta pela obtenção do material.
O que se reivindica, nesta forma de procurar o conhecimento, não é uma petição que encerra um “deixa-me olhar e deixa-me dizer o que penso”.
A proposta é: observa como olho; escuta o que digo; reflecte como interpreto a realidade em que vivo, atrás disso há uma vivência individual fruto de uma experiência colectiva, uma busca permanente de respostas sobre a verdade, mesmo que esta esteja sempre a despontar e saibamos que não se vai manifestar na sua totalidade.
Actuar com o coração
Por isso, quero permitir-me actuar de acordo com o impulso que nasce do coração e das entranhas, e que a cabeça lhe dê só a forma para expressar o saber que sinto.
Isto é, o conhecimento como certezas que fluem através dos poros e que não procedem da racionalização, mas de uma espécie de côr acumulada no corpo, que desperta perante estímulos que se ligam à essência do universo, fazendo-nos participar, por uns instantes, de algo imenso que não é possível apanhar mas que, como uma bússola, orienta a nossa procura de certezas.
Para isso observo a realidade a construir-se num eterno movimento. Movimento que identifico como um processo e que tem que ser visto como períodos de um ciclo entre a vida e a morte.
Um ciclo que pode ser expresso como ciclos vitais ou como ciclos temporários ou ciclos espaciais... ou todos ao mesmo tempo, mas que nos hão-de levar a descobrir o ponto no qual se encontram as realidades que estamos a observar e que estamos a viver, porque o observador dessa realidade está intimamente dentro desse processo: é o investigador parte do investigado.
Na verdade é a experiência vital a que serve de meio para que o processo se ponha em marcha, se materialize. Isto, necessariamente, leva o actor a sentir-se como um factor do jogo do processo, um processo que é interno e externo.
Assim, ao analisar aquilo sobre que recai a sua atenção, vê e conhece a sua realidade interna. Isto é, olha aquilo que lhe fala de si mesmo e nessa actuação cria uma realidade que interacciona com a dos outros e que propicia uma nova que lhe devolve uma maior perspectiva e um aprofundamento maior do que é e quem é.
A fonte da acção consciente
Com tudo isto, o que se põe em evidência é a fonte de onde nasce a acção consciente. É uma fonte interna que se nutre e se renova constantemente.
Se se perde de vista esta perspectiva interna, perde-se ou adormece-se a criatividade e cede-se o protagonismo ao objecto, e o objecto não tem que estar ligado à vida, porque o objecto do qual se fala é aquele que foi criado pelo actor: ele não se cria.
Dois compromissos movem esta perspectiva: um como socióloga. Este compromisso leva-me a adoptar uma posição determinada para analisar a sociedade a partir da esperança, observando aqueles processos que dão sentido à construção da vida social, sobretudo no que se refere à construção daqueles valores que permitem mais uma interacção justa e solidária e uma possibilidade para o futuro.
O segundo compromisso, como criadora, tratando de construir um discurso que fale da essência que mobiliza a vontade de fazer da alma, uma alma que faz vibrar a sua criação e que ama o que cria porque sente a necessidade de estar viva, a necessidade de viver totalmente as experiências vitais humanas: experiências de prazer e de dor, de nascimento e também de morte.
Com tudo isso nós contamos para construir uma reflexão que nos leve à compreensão do sentido da nossa acção, partilhando com os outros, sem reparos, vivências, encarnação e teorias.
Isto parte da crença de que existe em todos os seres humanos de todos os tempos uma tendência para o transcendente que toma diferentes aparências, adopta diferentes atitudes, justifica-se com diferentes ideais e argumenta de diferentes modos.
É a forma em que o sujeito se projecta para a realidade pretendendo entendê-la ou construí-la. O impulso de transcendência está vinculado à esperança de que o futuro existe, qualquer que seja a sua materialização.
Por isso queremos ter parte activa nele e ajudá-lo a construir, mesmo que saibamos que é nesta acção que o sujeito se conhece e se constrói a si mesmo.
“A transcendência é como um ímpeto que se divulga em todo o sentido, que talvez se realiza em longos trajectos de maneira seguida e contínua, mas sem que esta continuidade constitua para ela a lei” (...): “ser é transcender”, resume Francisco Romero . (...) “O transcender chega à sua pureza e perfeição, continua este autor, enquanto transcender para os valores, enquanto limpo e verdadeiro reconhecimento e execução do que deve ser”(...)
Por isso, o importante, em toda a análise, é ir ao fundo de qualquer argumentação, tratar de encontrar aquela corrente interna que leva a corrente à superfície e que adopta a forma cultural que nesse momento histórico seja determinante para alimentar a intenção profunda que motivam as acções.
Essa corrente interna que constitui a justificação de uma vida humana, e que a dignifica, parece ser o alento permanente em toda a espécie e de toda a matéria. Também nos fala do não manifestado que intuímos que existe, que nos alimenta a fé no futuro e a esperança que novas criações se anunciem.
Chegados a esta posição, vamos tratar de aproveitar aquelas luzes que acenderam a intenção de transcendência de qualquer teoria, sem nos enredarmos naquelas já integradas, aceitando que as que hoje servem como explicação aos homens e mulheres deste século, amanhã serão vistas como insuficientes e só ficará como válida aquela tentativa de procurar respostas às inquietações eternas que se alojam no peito dos indivíduos e que se manifestam com diferente ímpeto em cada época, de acordo com os valores que se tenham estabelecido, fazendo com que nos sintamos um só e único coração que bate no mesmo cosmos.
Por isso, para procurar sem preconceitos, não é preciso criar fronteiras.
Alicia Montesdeoca