Os meus primeiros alunos tinham acabado de sair da escola primária. Um novo ciclo de vida começava ali, no ciclo preparatório.
A disciplina de português é frustrante para um professor. Ao contrário de disciplinas como a geografia ou a matemática, em que se podem fazer corridas de 100 metros – e ver os alunos chegar àquela meta em pouco tempo – o português era uma corrida de fundo. Cansativa, sem resultados imediatos à vista.
O português lida com as palavras. Com as palavras que se escrevem de forma diferente do dizer. Com palavras que se pensam. Com palavras escritas por outros e por nós transformadas. O português lida com o conceito e o pré-conceito. Com o olhar, com a imaginação furtiva, com o desafio, com o medo de não saber como começar, com o receio de deixar coisas por dizer. O português lida com o nosso lado de dentro.
Quando numa das primeiras aulas me saiu a palavra “amor”, todos riram em cochicho, como se tivesse dito uma asneira. Tinha apenas quebrado um tabu, iniciado um caminho. Só então entendi verdadeiramente o que os meus professores queriam dizer quando nos apregoavam que também aprendiam com os alunos.
Na noite anterior à primeira aula sonhei. Sonhei tanto, tanto, que acordei cansado por já ter dado as aulas que tinha naquela manhã.
Que sensação inesquecível aquele primeiro olhar. Tão pequeninos que eles eram. Que olhares tão entregues a si mesmos, tão desprotegidos e abandonados... Bastou um sorriso, um sorriso apenas, para os sentir quase em casa, sem tantos receios.
Apesar de nunca o ter conseguido, hoje acredito que tentei ser o professor que sempre ambicionei ter.
A passagem da escola primária para o ciclo representava um choque. Aqui não havia o professor único a quem afectivamente se ligaram durante quatro anos. Os livros escolares perderam o colorido e o encanto dos livros de fadas.
O manual adoptado foi um dos livros mais lidos no mundo - depois da Bíblia e de “Como fazer amigos e influenciar pessoas” - do escritor e aviador francês Antoine de Saint Exupéry, “O Principezinho”.
A escolha teve em conta muitos factores. Visualmente parece um livro para crianças. Mas não é. Na aparente simplicidade das coisas e das histórias, estão as descobertas de conceitos, das formas, do dizer, do olhar atento, fotográfico e imaginativo da realidade ou de uma virtual-realidade.
O trecho sobre o conceito de uma casa bonita – para uns, será uma casa caríssima; para outros, uma que tenha apenas gerânios à janela – marcou profundamente todo o trajecto de aprendizagem e descoberta. A partir daquele momento nasceu uma preocupação permanente de estar atento à realidade. Não existiam apenas casas, flores, céu, amor ou liberdade. Havia uma cor, uma forma, um sentir, quando o olhar, ou o pensamento, aí parava. Havia uma procura pela qualificação, pelo vestir as coisas com a realidade ou com a imaginação.
Não se pretendia recriar os ambientes vivos e realísticos de Eça. Pretendia-se quebrar definitivamente com as ancestrais formas de ver - e depois dizer – as coisas. “A vaca é um animal doméstico... eu gosto muito da vaca.” Este era o estereótipo do vazio pensado de gerações como a minha que, para espanto meu, encontrei ainda em alguns alunos (veja-se a história do “passarinho”).
Escrever não podia ser esse acto parideiro, baseado numa qualquer chapa cinco. Escrever era tirar da gaveta das ideias, dos olhares, das discussões (das interpretações), pedaços de céu, bocados de contradições, era tirar qualquer coisa e preencher a lacuna de um mote dado.
Ao longo do ano foram-se compilando os pequenos textos realizados nas aulas e em trabalhos de casa. Da simplicidade das “estrelas amarelas”, à “flor azul que nunca vi”, do conceito mais elaborado de amor como um “rancor que temos dentro de nós que nos ajuda a viver” até à composição que é já uma história com sabor a pouco, aí estão os passos de um caminho percorrido durante um ano.
Antes do ano terminar fez-se um pequeno livro na própria escola. A matriz de cada página foi criada numa folha de cera, chamada stencil, que depois de escrita e desenhada à mão com um estilete, era colocada no tambor do duplicador. Uma manivela fazia com que uma folha A4 se deslocasse para a saída sendo apertada pelo tambor. A folha de cera deixava passar a tinta pelos caracteres abertos pela máquina escrever. Era a fotocopiadora da altura.
A primeira edição esgotou-se nas livrarias e na própria escola. Os filhos mais jovens da terra tiveram honras – merecidas - de livro e uma segunda edição teve idêntica sorte que a primeira.
É esse pequeno livro, com data de Maio de 1974, que encontrei há dias e cujo conteúdo se reproduz. Tive a sorte de ter os melhores alunos que um professor pode ambicionar. E não consigo disfarçar a emoção quando algum vem ter comigo tantos anos passados. Não lhes posso dedicar o que lhes pertence, mas fica, num grande abraço, o agradecimento pelo prazer de recordar as veredas e caminhos que percorremos juntos.
O livro