Texto lido no programa HISTÓRIA DE VIDA, da Antena 1, dia 28 de Junho de 2007.
Your browser does not support the audio element.
Arroz de miúdos
- Então tu ficas encarregado do arroz.
- Combinado!
Tinha assim ficado acordado que do arroz tratava eu durante aqueles dias de campismo.
Éramos cinco adolescentes com ordem de soltura. Pela primeira vez estávamos por nossa conta e risco entre pinhais junto à praia. Longe, mas não muito, das saias da mãe e do poder paternal.
A tarefa atribuída a cada um não era o problema principal. Sério mesmo era conseguir descobrir como aquilo era feito lá em casa – no meu caso, o arroz – sem que ninguém se apercebesse disso.
Não sei de culturas que tenham educado os homens para a cozinha. Homem na cozinha? Onde é que já se viu? Enfim, orgulho ou receio da proximidade de um lugar sagrado onde o mistério acontece.
Poucos dias havia pela frente para anotar, com a precisão possível, ingredientes, gestos e tempo de um cozinhado. Não era coisa simples. Aquilo tinha de ser feito disfarçadamente e sempre a uma distância segura, para não levantar suspeitas. Sim, que essa aproximação dos tachos poderia ser depois assunto de conversa entre as amigas da minha mãe e das demais.
Naquela idade a casa era mais uma pensão – completa – que um lar. Dormida com pequeno almoço, almoço e jantar, não falando da roupa lavada. O resto do tempo era passado no café com os amigos. Este sim, era o lar da rapaziada. Ali se falava de tudo e de nada, ali se planeava o que fazer, ou não fazer, e aonde ir ou não ir.
Foi ali que decidimos fazer campismo.
- Já sei como se faz o estrugido (refogado) para o arroz – era esse o segredo do saboroso arroz da minha mãe. Podia comer-se arroz com arroz.
Na data marcada arrancamos. Uma carrinha carregada de mantimentos e preocupações maternais. Avulso iam também conselhos e recomendações sem fim.
Se houvesse pizas e micro-ondas nessa altura, tudo seria bem diferente. Assim, descobrimos que havia mais enlatados que os que imaginávamos. Em variedade e quantidade. Sim, que “eles não sabem fazer nada e não podem morrer à fome” – pensavam eles.
Escolheu-se o local, montou-se a tenda e a tarde passou-se entre o reconhecimento do terreno e a logística. O entardecer trazia o desafio de mostrar os segredos aprendidos.
- Que comemos hoje?
- Eu faço o arroz!
E aqui começou o fim do que poderia ser uma promissora carreira de cozinheiro. Descascou-se a cebola e os dentes de alho, regou-se a preceito com azeite e… fogo à peça.
Pouco depois as nossas almas elevavam-se. O aroma soberbo que saía da panela agitava os corpos já cansados que ansiavam pelo prazer reconfortante desse arroz.
- Quanto comes?
- Um prato.
- E tu?
- Também.
- Com um cheirinho destes, o meu tem de ser bem cheio.
E para dentro da panela entraram cinco pratos de arroz bem medidos.
Nestas coisas da comida há que saber esperar. Quem descobriu a impaciência culinária, abriu, com sucesso, o primeiro “pronto a comer”.
Sentamo-nos a adorar a panela, à espera que o milagre acontecesse. A água e o arroz tinham levado o aroma do refogado. Mas devia ser mesmo assim…
Não tardou que uma admiração geral se transformasse em séria preocupação. O arroz começava a subir, subir, ameaçando sair pela panela fora.
De um salto, pôs-se a tampa na panela. De pouco adiantou. Ela começou a subir também.
Como para grandes males só há grandes remédios, a tampa levou em cima com um daqueles paralelos de granito das estradas. Acalmou, por fim.
Que raio, a minha mãe nunca precisou de pôr nenhum peso sobre a tampa… Nem alinhavados estavam estes pensamentos, quando todos recuaram, estupefactos.
A panela tinha-se transformado numa marmita de Papin descontrolada, numa máquina a vapor que cuspia arroz por todo o lado com um ruído de sopro bem zangado.
Uma vergonha! Por momentos pensamos que aquilo podia explodir e alguém apagou o lume por instinto.
O desânimo instalou-se. Não havia plano B, mas os nossos pais deviam ter-nos encomendado a todos os santos à partida.
Não muito longe de onde nos encontrávamos, um casal de certa idade tinha presenciado tudo. Outra vergonha em cima da primeira. Apercebemo-nos disso quando um vulto feminino se aproximou. Se houvesse por ali um buraco… Mas não havia.
- Não se preocupem que isso acontece. Venham jantar connosco! – disse ela com sorriso maternal.
Será que tinha medido bem as palavras? Dar de comer a cinco mânfios daquela natureza rebentava com qualquer despensa.
Entreolhámo-nos um tanto incrédulos, mas instintivamente tínhamos acabado de estabelecer um pacto de ponderação que admirou os nossos anfitriões. Hoje inclino-me a pensar que “quando a comida é pouca, sobra sempre”.
Pouco importa. O que interessa é que dali para a frente os dias foram diferentes. Nessa noite quebramos um tabu e falamos de culinária.
José Manuel Ruas