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Há caminhos que percorremos com o fervor de um maometano em direcção a Meca. Ano após ano vão-se tornando nossos. São cúmplices dos prazeres que nos levam e das saudades que nos deixam.
O que torna diferente um sítio é o que nele sentimos. O resto, são vulgaridades dos lugares comuns.
Monte Gordo-Ayamonte. Final da década de 70. Por essa altura, todos os anos maldizia a subida do preço dos combustíveis, exactamente na véspera do dia marcado para regressar de férias.
O ordenado de professor era esticadinho ao centavo, mas havia sempre um dinheiro que nem em pensamento existia: o do regresso a casa. Estar a mais de 500 km de casa a tanto obrigava. O resto era gasto até ao último tostão. Sempre. Carpe diem…
Uma coisa óptima das férias era perder a noção dos dias, das horas… Ignorar noticiários, revistas e jornais, dramas e guerras do planeta. Por isso era sempre apanhado de surpresa pela subida dos preços dos combustíveis. Dramaticamente apanhado de surpresa.
A notícia da subida de 1 escudo (sempre anunciada para “logo depois da meia noite”) fazia, naquele tempo, uma corrida às bombas com filas intermináveis de aforradores, na ânsia desmedida de poupar magras dezenas de escudos.
Ayamonte trouxe hoje à memória uma pálida imagem dos tempos das filas momentaneamente enormes. Hoje vive-se em permanente estado de fila. Mais de 60 escudos de diferença por litro fazem o negócio perfeito. Azar dos portugueses. Sorte dos espanhóis.
O calor abrasador empurra-nos para a sombra que cobre as montras das lojas e o olhar por ali fica. Estratégia de marketing espanhol, quase que aposto.
Se as bugigangas e os trapinhos pouco me dizem, as coisas de escrever, essas deixam-me literalmente preso e colado às montras.
Só quem sofreu dá valor às coisas. No meu tempo de escola primária não havia esferográficas. Se as havia elas não chegavam às recônditas mercearias da aldeia, onde tudo se encontrava desde o alfinete à popeline, desde a aguça (apara lápis) aos cadernos de duas linhas.
As carteiras da escola primária eram de uma peça única de madeira. O banco, de dois lugares, ligava-se a um tampo inclinado e, num patamar plano mais acima, um sulco na madeira fazia adivinhar que ali era o lugar do lápis ou da pena.
Bem perto e por cima deste sulco ficava um tinteiro embutido, branco de esmalte ou porcelana, já não sei. Era aí que se molhava e escorria, com cuidado aprendido, o aparo.
Nunca se comprava apenas um, porque um descuido ou um pouco mais de força, abria-o em dois, ficava escachado.
Escrever com uma pena era um nunca saber se tudo iria começar desde o princípio. O aparo, por vezes, lavrava o papel em vez de o afagar e uma pequena gota de tinta saltava para o papel. Quanta arrelia!
O papel mata-borrão não matava nada e aquela cor de rosa de que era feito não combinava com nada em tal momento.
Naquela altura queríamos que o tempo corresse, voasse… Queríamos crescer depressa… Crescer queria dizer largar os calções e vestir calças, queria dizer largar a pena e usar uma sonhada caneta de tinta permanente.
Esse dia chegou, enfim.
No dia do exame de admissão ao liceu, nem dava para acreditar. Tinha nas mãos uma Pelikan verde azeitona e preta. Tinha nas mãos um sonho e um adeus à meninice.
A caneta esteve em todos os longos exames da universidade e nos momentos do prazer da escrita. Até que a tinta nos separou. Momentaneamente, entenda-se.
Veio depois a Parker, esferográfica que fez furor e marcou a escrita de uma geração. Parte superior em metal, corpo bordeau. Trazia uma enorme carga e deslizava macia como nenhuma outra. Era prazenteira no toque, como a caneta.
Foi esta, esta mesma esferográfica que me colou à montra da papelaria na praça central de Ayamonte.
Como num filme, estas imagens passaram em relâmpago pela memória enquanto a admirava e dizia: “- É ela!”
Entrei. Trouxe-a comigo. Pelas ruas estreitas em direcção às tapas, antecipava já o sabor e o prazer de alinhavar estas linhas sobre o papel. O PC podia esperar.
“- Hola! Que tal?” – disse o empregado do bar, estendendo a mão em cumprimento. Vemo-nos de ano a ano e talvez seja isso que dá àquele cumprimento um sabor especial, apesar de tão fugaz.
A rua estreita feita esplanada tem uma sombra algo original. É coberta por toldos seguros na parte superior dos prédios e à noite recolhem-se deixando imaginar o céu estrelado que lá em cima se esconde.
No chão uma alcatifa verde sugere, em vão, um pedaço de campo no meio da cidade. Enquanto se esvazia uma caña gelada e se saboreia o peculiar tempero das saladas (e os pinchos? que coisa boa…), ouvem-se acordes de viola. A vida também se ganha com uma viola às costas. Que estranho ouvir Zeca Afonso e Rui Veloso na terra do salero e dos olés. Nunca tinha visto por ali um português.
Depressa o contentamento fez-se descontente. Não havia uma única canção que chegasse ao fim… Foi-se embora inglório, mas os estrangeiros nem se aperceberam.
A diferença notou-se pouco depois quando um som alegre de concertina dobrou a esquina e entrou rua dentro com um ritmo frenético de viola a acompanhar.
Reportório vivo, caliente, com puro sangue latino. Fazia bater o pé, gingar o corpo. Levaram palmas sem conta e outras tantas moedas.
Para o ano quero voltar a percorrer este caminho…
José Manuel Ruas
Criado em: 25/08/2006 • 17:58
Actualizado em: 05/09/2006 • 11:58
Categoria : Para ler e deitar fora
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