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Todos os anos por ali passava em direcção ao sul, a caminho da praia da sua infância.
Um dia pegou numa foto de miúdo, numa daquelas fotos em que a pose era tão importante como o cenário escolhido para fundo. Olhou e voltou a olhar para ela e logo percebeu a importância que o fundo tem numa fotografia quando anos depois nela se pega.
Por trás da sua figura esguia e aprumada, estava o Casino de Monte Gordo. A praia, essa ficava a poucos metros dali. Praia amiga de ondas pequeninas que pareciam não ter fim.
Aquele sítio varria-lhe da memória o mar enfurecido que lhe trazia o medo dos verões vividos lá no norte, na praia do Furadouro, onde as ondas ruidosas faziam covas e engoliam, em remoinhos, os incautos mais pequenos.
Da borda de água vivam os banheiros. Homens de respeitável porte, conhecedores das manhas e segredos de um mar sempre indisposto. Estavam ali para isso mesmo: para dar banho a troco de umas moedas.
E não havia mé, nem meio mé. Quem fosse agarrado pelo banheiro, mergulhava três vezes na rebentação e não havia súplica ou birra que salvasse fosse quem fosse de tal baptizo. Um horror que se aprendia a controlar à segunda ou terceira vez, quando se descobria que o que tinha de ser, tinha mesmo muita força e era bem melhor estar caladinho e suster a respiração que engolir um pirolito no meio do sufoco.
Como era diferente a praia de Monte Gordo. Como era irresistível o convite que lhe fazia. Se aquele mar falasse, dir-lhe-ia: “Anda a mim...” Foi um amor à primeira vista, uma paixão para a vida inteira.
Todos os anos ali vinha. Numa dessas longas e intermináveis viagens, um sítio e uma história haviam de ficar guardados na memória.
O sítio era uma estrada, igual a tantas outras. Nada havia em redor. Apenas uma placa indicava Melides à direita.
Ao passar neste exacto sítio, surgia a pergunta sacramental: “sabes quem foi o inventor da agulha?”
Claro que houve um primeiro não. Um primeiro e único, apesar de se repetir ano após ano a mesma pergunta, no mesmíssimo local.
A resposta impressionou-o. O riso rasgado escondia a surpresa de uma linguagem que não esperava ouvir. Nunca tal coisa se disse, nem se permitia dizer, que a educação e os bons princípios a tanto obrigavam.
Talvez por isso, a memória lhe tenha dado um sopro de eternidade e essa lembrança repetida se vivesse como na primeira vez.
Muitos anos mais tarde, ao passar ali, disse:
- Olha, Melides!
- Sim, que tem?
- Sabes quem foi o inventor da agulha?
- Não!
- Só vou dizer uma vez. O Elias fez o bico, Melides o meio e Melambes o cu.
José Manuel Ruas
Criado em: 25/08/2006 • 17:53
Actualizado em: 05/09/2006 • 11:59
Categoria : Para ler e deitar fora
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