Este é hoje em dia um problema candente que tem uma grande tradição na cultura anglo-saxónica e está a despertar um grande interesse em todo o lado.
Muitas perguntas estão no ar e nem sempre têm respostas correctas.
Serão ciência e religião incompatíveis e opostas? A Igreja perseguiu os cientistas? Galileu morreu na fogueira condenado pela Inquisição? Os papas condenaram a teoria da evolução? A maioria dos cientistas é materialista e ateu?
Continuam a repetir-se hoje muitas afirmações negativas sobre a relação entre ciência e religião, às vezes, com inflamada virulência e alguns vêem na religião um vírus maligno que se opõe ao progresso da ciência.
O tema necessita de uma reflexão séria e serena que examine a relação entre ciência e religião como formas de conhecimento e fenómenos sociais e como foi esta relação ao longo da história, especialmente, em relação ao cristianismo.
Este é o enfoque deste livro. Ninguém pode hoje duvidar que a ciência e a religião são, sem dúvida nenhuma, as duas grandes visões sobre o mundo. Mesmo havendo outras, como a artística, estes duas têm uma extensão e força que as situam como as duas mais importantes atitudes de olhar o mundo.
Em geral, podemos dizer que a ciência trata de compreender a natureza do mundo material que nos rodeia, como surgiu, como o conhecemos e que leis o regem.
A religião, por outro lado, trata do que transcende o mundo material e põe o homem em contacto com o que está além, o numinoso (que se refere a uma deidade), o misterioso, numa palavra com o mistério de Deus e a sua relação com o homem e o universo.
Este é tema central abordado pelo autor, analisando-o sob diversas perspectivas e estabelecendo as relações existentes.
Três abordagens: epistemológica, histórica e sociológica
As relações entre ciência e religião podem abordar-se sob diversos pontos de vista.
Tanto a religião como a ciência são fenómenos culturais que têm estado presentes ao longo da história desde a mais remota antiguidade. Às vezes corre-se o perigo de supor que a ciência começa com a ciência moderna do Renascimento, esquecendo todos os desenvolvimentos anteriores. Isto é um grave erro, já que o nascimento da mesma ciência moderna não pode entender-se sem os desenvolvimentos científicos anteriores.
Remontando-nos aos alvores da ciência na antiguidade podemos encontrar já interacções com a religião. Um interesse especial tem a relação entre cristianismo e ciência, já que a ciência moderna nasce precisamente no ocidente cristão.
Esta relação começa com os primeiros autores cristãos do século III e continua ao longo do tempo até aos nossos dias. Às vezes simplifica-se e apresentam-se conclusões erróneas sobre esta relação ao não ter-se em conta como evoluiu ao longo da história.
O enfoque histórico é, portanto, imprescindível para chegar a uma visão correcta do problema. A religião e a ciência constituem formas de aproximação à realidade, isto é, formas de conhecimento com diferentes peculiaridades. É, assim, importante estudar a diferente natureza de cada uma delas e a relação que pode estabelecer-se entre o conhecimento científico e o conhecimento religioso.
Esta reflexão pertence ao campo da filosofia. A reflexão filosófica, e concretamente a epistemológica, é imprescindível para estabelecer as relações entre ciência e religião como formas de conhecimento. Fé e experiência religiosa formam o fundamento do conhecimento religioso que se formaliza na teologia, enquanto que o conhecimento científico está formado por um marco formal de leis e teorias, relacionadas com uma base empírica de experiências e observações.
Estabelecer claramente a natureza e os limites destes dois tipos de conhecimento é fundamental para poder estabelecer correctamente a relação entre ambos. A religião e a ciência são, para além disso, fenómenos sociais. O seu aspecto sociológico é, portanto, muito importante para conhecer as relações entre elas. Este aspecto é menos conhecido e poucas vezes se leva em conta.
Ciência e religião formam dois sistemas sociais complexos que agrupam experiências individuais e colectivas e que têm as suas normas e padrões de comportamentos que resultam na formação de comunidades com um tipo de estrutura e linguagem própria.
Ambas as comunidades interagem com a sociedade geral em códigos que podem ser de aceitação, rejeição, prestígio e influência com as coerentes interacções entre elas. A afirmação de posições de influência social foi, às vezes, de confrontação entre si.
A incidência normativa da religião nos comportamentos, que desemboca em propostas éticas, interage com a prática da ciência, que não pode alhear-se dos problemas éticos que nela podem surgir.
A preocupação cada vez maior da sociedade pelos problemas éticos, relacionados com a ciência, abre hoje novos campos de relação desta com o pensamento religioso.
Ciência e religião compatíveis ou incompatíveis?
A primeira pergunta que podemos colocar-nos é se ciência e religião são compatíveis entre si ou não. Isto é, se uma e outra podem conviver ou se necessariamente uma exclui a outra e entre elas só pode haver um inevitável conflito.
Não é raro encontrar, ainda hoje, a opinião, às vezes generalizada, que ciência e religião são mutuamente incompatíveis e a relação entre elas foi sempre uma fonte de inevitáveis conflitos.
Consideram-nas como duas visões opostas do mundo, que só podem chocar entre si. Não apenas isto, mas cada uma delas nega a validade da outra. Além disso, hoje defende-se que só a visão da ciência pode ser a verdadeira, pelo que a visão religiosa tem que ir desaparecendo a pouco e pouco.
Deste ponto de vista, o avanço da ciência implica sempre um retrocesso da religião. Para apoiar esta posição faz-se muitas vezes uma interpretação sossegada da história e trazem-se sempre os mesmos casos de Galileu e Darwin.
Mesmo que se faça retroceder esta posição até às origens da ciência moderna (que na verdade começa no século XIX e encontra alguma raízes no século XVIII), pretendendo com isso dizer que a própria ciência só pode estar em conflito com a religião. Dois livros publicados por John W. Draper e Andrew D. White no final do século XIX contribuíram de maneira especial para a divulgação desta posição.
Draper, sobretudo, nos seus ataques mais furiosos contra a Igreja católica diz que o cristianismo católico e a ciência são absolutamente incompatíveis. Estes dois livros passaram a representar a postura que mantém a incompatibilidade e o conflito inevitável entre ciência e religião.
Depois da segunda guerra mundial dá-se uma mudança nestas posturas. Por um lado, começa-se a abandonar a euforia que tinha favorecido a ideia da incompatibilidade e o conflito inevitável entre a ciência e a religião. Da admiração sem limite pela ciência, foi-se passando para um olhar mais crítico e ainda para um certo receio, causado pelo perigo de algumas das suas consequências.
Por outro lado, os novos estudos históricos mostraram que muitos dos argumentos usados por Draper e White não têm uma base histórica séria. As relações entre a ciência e a religião ao longo da história foram complexas e não é possível reduzi-las a uma absoluta incompatibilidade e contínuo conflito.
Numerosos estudos históricos dos últimos anos, que abordam temas tão delicados como as épocas de Galileu e Darwin, demonstraram bastante claramente que nem só o necessário conflito nem a contínua harmonia reflectem as complexas relações entre ciência e religião.
Trata-se de duas visões autónomas do mundo entre as quais se deve estabelecer um frutuoso diálogo e que podem considerar-se como complementares. Alguns autores procuraram uma certa integração entre ambas, mas isto resulta mais problemático.
A origem do universo, a vida e o homem
O homem sentiu sempre necessidade de compreender a natureza e a origem das coisas que o rodeiam e também o conjunto de todas elas, isto é, o universo e de uma maneira especial a vida e si mesmo.
Ao longo do tempo estas concepções do universo ou cosmologias foram mudando até chegar à que temos hoje, que sem lugar para dúvidas mudará também nos séculos futuros.
A par da visão da natureza do universo, coloca-se também a da sua origem e como chegou ao que hoje vemos. Ao enfrentar-se com o universo, e procurar dar uma resposta às perguntas que se lhe colocam sobre a sua natureza e origem, o homem adopta diversos pontos de vista, que hoje podemos separar como científico, filosófico e teológico.
Estes pontos de vista estão hoje mais ou menos separados, mas durante muito tempo estiveram misturados. Ainda agora, apesar de não serem reconhecidos muitas vezes, estes pontos de vista, confundem-se com questões que cruzam inadvertidamente as fronteiras que estabelecemos entre eles.
Em relação a estes temas continuam no ar questões que cruzam a fronteira da filosofia e da teologia - campos importantes da relação entre ciência e religião.
Uma questão importante é considerar as concepções que o homem teve da natureza e da origem do universo ao longo da história e a imagem que hoje nos dá a ciência actual e ver como se relacionam com o que as religiões nos dizem sobre o mesmo tema.
O problema tem a ver com as relações que se estabelecem entre o mundo e a divindade em cada pensamento religioso. As tradições orientais participam de um certo panteísmo e imanentismo, no qual a separação entre o mundo e a divinidade fica desfocada numa concepção cuja última realidade é unitária.
Nelas se encontra a ideia de um universo eterno, cíclico que ultimamente tem o seu fundamento num último princípio omnipresente e incognoscível, além do ser e não-ser, quer seja Brahma ou Tao, com o qual finalmente se identifica.
Não há um verdadeiro conceito de criação, mas o próprio universo é como uma extensão do que podemos considerar como o âmbito do divino e não diferente dele. As ideias da unidade e a mudança ocupam um papel importante, já que o universo é ao mesmo tempo eternamente em mudança e o mesmo, que nasce, se desenvolve, morre e volta a nascer e que não é realmente diferente do princípio divino com o qual se identifica e cujos avatares se manifestam na natureza.
O Deus criador do Islão
Na tradição judaico-cristã recolhida também pelo Islão encontramos uma novidade sobre o entendimento das tradições orientais que consiste na concepção absolutamente monoteísta e transcendente de um só Deus que se revela na história e que é o criador do céu e da terra, isto é, de tudo o que existe.
O povo judeu cria esta concepção de Deus e do mundo nos seus escritos reunidos nos diversos livros da Bíblia. Estes escritos, aceites na Bíblia cristã, são a base de uma elaboração posterior de acordo com a fé cristã. Eles servem, também, de base à concepção de Deus criador do Islão.
A importância desta tradição é grande, já que a ciência moderna nasce no contexto cristão de ocidente e nela influiu a sua concepção do mundo como diferente de Deus e criado por ele. Um elemento chave no nascimento da ciência moderna é a proposta de um novo modelo cosmológico heliocêntrico que vai substituir o geocêntrico, vigente desde a antiguidade e elaborado pelos grandes astrónomos gregos.
Este modelo cosmológico geocêntrico adaptado ao pensamento cristão deu origem à imagem do universo que vigorou durante toda a Idade Média. A proposta da nova cosmologia foi obra de Nicolás Copérnico e Galileu Galilei defendeu-a, vindo a dar origem a um dos conflitos mais famosos entre ciência e religião.
O problema centrou-se no confronto entre a interpretação literal dos textos da Bíblia que apresentavam a Terra imóvel e o Sol em movimento e a nova proposta cosmológica da Terra girando em volta do Sol.
Este problema vai levar à condenação pela Igreja do sistema de Copérnico e mais tarde ao de Galileu por defendê-lo publicamente no seu livro. Muito se escreveu sobre esta condenação, o que não há dúvida é que se tinha cometido um grande erro e uma grande injustiça.
Na verdade, quem saiu mais prejudicada foi a própria Igreja que teve de carregar desde então com o peso de uma decisão errada que marcou negativamente a sua relação com a ciência.
Mesmo que a prudência pudesse aconselhar então uma certa precaução sobre a aceitação do novo sistema cosmológico, isto não justifica que fincasse pé na interpretação literal das Escrituras e o condenasse como opositor da fé cristã e, menos ainda, obrigasse Galileu a abjurar.
As autoridades eclesiásticas não souberam desligar-se das questões astronómicas, onde nunca deviam ter entrado e, arrastados por uma interpretação literal da Bíblia, chegaram a considerar como doutrina herética, ou pelo menos suspeita de heresia ao heliocentrismo.
Génesis e criação
No ocidente cristão, o relato do Génesis sobre a criação, que se aceitava literalmente, implicava que as espécies animais e plantas tinham sido criadas cada uma independentemente a longo de seis dias. Os comentários a estes textos não farão mais que recalcar esta ideia da criação directa de Deus de cada uma das espécies de plantas e animais e especialmente a criação do homem à sua imagem e semelhança, dando ao universo uma duração de aproximadamente 6000 anos.
Esta visão vai entrar em colisão com os avanços da geologia e a proposta de Charles Darwin da teoria da evolução na qual se propõe o mecanismo da selecção natural para explicar a origem das espécies, incluindo o homem, desde aproximadamente os primeiros seres vivos.
Apesar de ter havido inicialmente, do ponto de vista puramente científico, uma certa oposição, a teoria da evolução foi-se impondo, de modo que em vinte anos o acordo entre a comunidade científica era já quase unânime.
Está claro que as ideias de Darwin sobre a evolução chocavam com muitos aspectos da doutrina tradicional cristã, entre eles, a natureza da acção de Deus no mundo, a finalidade da criação, a historicidade do relato da criação interpretado literalmente e a história da criação do homem a imagem de Deus.
Não faltaram desde o princípio as interpretações puramente materialistas, do que se chamou o “naturalismo evolutivo” que seria utilizado contra a doutrina cristã da criação e a providência.
A selecção natural apresentava uma proposta de naturalismo rigoroso, no qual não se descobria a necessidade da acção de nenhum agente externo para explicar o desenvolvimento e a evolução das espécies. Para o pensamento ortodoxo cristão isto representava um eliminar da consideração da natureza toda referente a um Deus criador.
É lógico que a evolução se percebesse como uma ameaça para a religião. O estender pontes entre as duas doutrinas tornou-se difícil no início, quando, para além disso, as mesmas bases científicas do mecanismo da evolução continuavam ainda em debate.
À medida que a teoria científica se foi consolidando e os mecanismos da selecção natural se tornaram mais claros, a sua aceitação pelo pensamento cristão foi-se tornando cada vez mais necessária.
Apesar de durante um tempo as posturas evolucionistas se considerarem suspeitas em ambientes eclesiásticos, a sua aceitação acabou por impor-se. A evolução do universo e a vida sobre a terra mostram como Deus criou o mundo.
Ética, ciência e religião
A ciência pode considerar-se como uma actividade humana e como uma forma de conhecimento. No primeiro caso, como qualquer actividade humana, pode perguntar-se se a sua prática deve ajustar-se às normas da ética e no segundo se os seus conhecimentos contribuem algo para essas normas.
O primeiro aplica-se também, com mais razão, à técnica como aplicação prática da ciência às diversas necessidades humanas. Por outro lado, toda a religião comporta normas comportamentais e tem, portanto, uma dimensão ética.
Desta forma, o problema ético é inevitável ao tratar-se das relações entre ciência e religião. Ambas incidem no campo da ética e isto pode levar a fricções e conflitos entre elas.
Podemos começar por questionar o comportamento ético dentro da prática da própria ciência e se ela pode fornecer os princípios do seu comportamento ético ou se é necessário que aceite valorações que se baseiam em outros âmbitos do conhecimento humano.
A estas considerações podemos chamar a ética interna da ciência. É cada vez mais patente, que na mesma prática científica, as normas éticas do comportamento devem de ser respeitadas.
Entre os cientistas, os físicos concluíram muitas vezes que a conduta não-ética é neste campo da ciência um verdadeiro problema. No entanto, muitas vozes se levantaram para reconhecer que esta postura deve ser abandonada. O comportamento ético não pertence só às ciências aplicadas ou à tecnologia, mas a toda actividade científica. Com efeito, reconhece-se hoje que existem muitos problemas na prática da ciência que devem reconhecer-se como comportamentos não-éticos.
Passemos agora ao problema do que podemos chamar a ética externa, isto é, a ética que tem a ver com os resultados da ciência. Trata-se agora, portanto, da ética afecta ao uso dos resultados da ciência.
A responsabilidade sobre os resultados do trabalho científico abre uma ampla gama de considerações. Pode-se falar neste contexto de uma ética pessoal de cada cientista e também de uma responsabilidade colectiva da comunidade científica.
Esta responsabilidade pessoal e colectiva considera que hão-de estar sempre presentes as possíveis consequências que derivam do trabalho científico. Hoje isto adquire uma importância maior, devido ao papel primordial que a ciência adquiriu no desenvolvimento material e crítico da nossa sociedade.
Esta responsabilidade não se pode excluir nunca e estende-se a todo o trabalho científico, mesmo que em si mesmo se considere afastado de toda a aplicação prática. Mesmo que hoje os projectos científicos incluam um grande número de investigadores e técnicos, isto não exclui de responsabilidade cada um deles.
O investigador não pode amparar-se na colectividade para desinteressar-se da sua própria responsabilidade. Esta responsabilidade obriga cada um, e à colectividade, a fazer todo o possível para que os resultados do trabalho científico se empreguem só para o bem do homem e da sociedade.
Em algumas ocasiões esta responsabilidade pode levar a tomadas de decisão com consequências pessoais graves, mas que não podem ser descartadas. O autor acrescenta, como exemplo, os problemas da ética meio ambiental.
Conclusão
O tema da relação entre ciência e religião é vasto e aqui ficaram apenas umas breves anotações sobre alguns capítulos do livro de Agustín Udías. Convém lembrar a amplitude dada aos temas históricos com os quais se pretende esclarecer muitos mal-entendidos que obscureceram a compreensão da relação entre ciência e religião, a análise das relações que se podem estabelecer entre elas e como incidem ambas nos problemas éticos.
Javier Monserrat
professor na Universidade Autónoma de Madrid, é membro da Cátedra CTR