Aqui há umas semanas dirigi-me a uma loja, a um quiosque onde vendem tabaco e fósforos, e pedi uma caixa de fósforos.
Uma donzela amável, sorridente, feliz, respondeu: «Não temos.»
«Ora essa! - volvi, estupefacto. - Parece-me que estão ali.»
«Não, não - replicou a donzela com ar feliz. - Aquilo não são caixas de fósforos; são caixas com fósforos».
Mas logo a seguir, por uma espécie de intuição que nos anima nestes assuntos, disse-lhe: «Faz favor dá-me um "maço de cigarros da marca tal.» Ela, pressurosa e amável, entregou-mo.
Ó minha senhora, não estou a perceber bem o que há pouco me disse. Pedi-lhe uma «caixa de fósforos e respondeu-me que não tinha; e que só tinha «caixas com fósforos». Agora peço-lhe um «maço de cigarros» e, pelos vistos, tem-nos. Ora se tem «maços de cigarros» (que contêm cigarros), parece-me que também pode ter «caixas de fósforos» (que contêm fósforos).
O mesmo se passa em relação ao «copo de água» e ao «copo com água», que tanto se ouve por aí.
Como surgem estas divergências que ganham foros de ciência popular oferecida aos balcões e mesas de café? A resposta é simples: o desconhecimento e confusão no emprego das preposições.
A preposição de em português possui abundantes e nítidos valores. Podemos contar nada menos que dezoito valores significativos múltiplos e concretos.
Designa o fim, indica o conteúdo, etc., e não só a "matéria", o modo de ser, do objecto.
Quando nos referimos a "escova de dentes" não queremos significar uma escova feita de dentes (matéria), nem a uma escova com dentes, uma escova dentada (modo); pretendo designar uma escova para lavar ou limpar os dentes (fim).
Do mesmo modo, a expressão «garrafa de vinho» indica o conteúdo (a garrafa contém vinho), ou o fim (garrafa para nela deitar vinho); não indica de maneira nenhuma a matéria (garrafa feita de vinho).
O mesmo acontece se dissermos um «frasco de compota». Se nos dirigirmos a uma pastelaria ou confeitaria a pedir um «frasco de compota» de pêssego ou de maçã, o empregado traz um boião com o conteúdo da fruta pedida.
Mas se entrarmos num estabelecimento de loiças e frascaria e pedirmos «frascos de compota», o vendedor compreende muito bem e apresenta-nos frascos à escolha para compota: é esse o fim a que se destinam e para isso servem.
Enfim, a expressão «copo de água» significa não só o conteúdo (com água), mas também o fim, a finalidade (para água); e não significa a matéria (feito de água). Igualmente, «caixa de fósforos» não designa a matéria (caixa feita de fósforos), mas, sim, e principalmente, conteúdo (com fósforos).
Inúmeras expressões designam quer independente, quer simultaneamente, o conteúdo e a finalidade, usadas com a preposição de: cabaz de morangos, cesto de uvas, taça de espumante, lagar de azeite, barril de vinho, etc.
Concluindo, devemos utilizar as expressões «copo de água» ou «caixa de fósforos».
Raul Machado - Programa Charlas Linguísticas na RTP (1958 a 1961)