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ARTIGOS DE FUNDO - O valor do sagrado
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No outro dia vi por acaso na televisão os dez últimos minutos de Kundun, o filme que o grande Martin Scorsese fez sobre o Dalai Lama em 1997. Creio lembrar que, na altura, o filme recebeu uma forte crítica; esses minutos finais, os únicos que conheço da fita, pareceram-me comoventes.
Tinham algo muito belo e hipnotizante e constituíam uma raridade cinematográfica. Lembravam mais uma oração, um poema visual ao sagrado, que um filme convencional.
Talvez todo um filme assim, se é que o resto é assim, resulte excessivo, e daí as críticas. Ou talvez Scorsese se enfrentasse num duplo dogmatismo: por um lado, o de uma certa esquerda maoísta, muito mais destemperada há dez anos, que detesta o Dalai pela sua oposição à invasora a China; e, por outro, o daqueles racionalistas tão extremados que não podem suportar nada que tenha que ver com o espiritual.
Eu não sou crente. Não me entra um Deus na cabeça e muito menos se pensamos em deuses antropomórficos. Na verdade, não sou capaz de aceitar intelectualmente algo assim: vejo-o como acreditar em fadas.
Além disso a história demonstra que as hierarquias das diversas religiões costumam abusar do seu poder e cometer todo o tipo de tropelias; desse ponto de vista sou bastante anticlerical, e penso que, com efeito, a religião pode ser usada como o ópio do povo.
Claro que há muitos outros opiáceos: o dogmatismo marxista, por exemplo, também adormeceu e embruteceu as massas. O problema, na verdade, é o fanatismo. Isso é o que lamina os neurónios.
Mas o facto de não acreditar em nenhuma divindade não implica que não seja capaz de escutar o latido do mistério da existência.
A vida é um enigma colossal e os seres humanos, fechados na minúcia da sua individualidade, sentem-se esmagados e enfeitiçados pela enormidade do que nunca conhecerão. E essa enormidade é o sagrado.
Ou seja, uma realidade que nos transcende, que é muitíssimo maior que a nossa pequena vida e a nossa pequena morte. Não podemos suportar a ideia de morrer, sempre tão cedo, sempre tão insensatamente e tentamos ir à frente do nosso curto tempo e da nossa ignorância.
Dessa ânsia de perdurar e entender nascem as religiões, e também as obras de arte, as sinfonias, as novelas, a teoria da relatividade, a física quântica, a fenomenologia, a observação dos planetas na gelada e escura imensidade do cosmos.
Não acho que haja nos humanos mais um sentimento estendido, mais básico e primário que o do impulso espiritual, que é essa necessidade de sair de nós mesmos, de unir-nos ao resto dos humanos, de dar sentido de algum modo ao sem-sentido da existência, de ver-nos fazer parte de um marco maior que nos console da nossa insuportável pequenez.
Já digo, é um rasgo primordial nas pessoas e muitos dos que aparentemente rejeitam tudo o que tenha a ver com "o espiritual" não se dão conta de até que ponto também estão a ser mobilizados por esse sentimento.
O marxismo, por exemplo, é outra das respostas a essa necessidade humana de transcendência; e quando um esquerdista fervorosamente materialista se comove vendo uma manifestação de marxistas de punho erguido, está a experimentar uma emoção religiosa, de religare, unir, ao sentir-se irmanado com os outros seres do planeta num projecto colossal, no sonho da construção de um paraíso na Terra. Isso, por muito que lhe desgoste a palavra, é uma comoção puramente espiritual.
Todos, crentes ou não, ricos ou pobres, intelectuais ou analfabetos, temos essa capacidade para nos sentirmos tocados pela asa obscura do sagrado. Isto é, pela conturbação e pela beleza do mistério essencial.
Os japoneses chamam-lhe satori, os psicanalistas falam de momentos oceânicos. Pode acontecer num entardecer tranquilo e belo, ou talvez, como a mim me aconteceu uma vez, ao olhar nos olhos aterradoramente humanos de um gorila. Você sabe do que falo: desse instante em que tudo parece encaixar e você sente fazer parte do mundo, do tempo, do tudo. E a vida palpita dentro de nós, monumental e quieta.
Rosa Montero
Criado em: 24/11/2007 • 00:37
Actualizado em: 24/11/2007 • 00:41
Categoria : ARTIGOS DE FUNDO
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